A epidemia de doenças transmitidas por mosquitos em Cuba em meio a colapso sanitário: 'Parece uma cidade de zumbis'
18/12/2025
(Foto: Reprodução) Pilar, de 81 anos, em recuperação do vírus chikungunya em sua casa, em Havana, em novembro
Getty Images/BBC
"O vírus" é a ameaça que mais assusta hoje os habitantes de Cuba, já afetados pela escassez de alimentos, medicamentos e eletricidade.
Febre alta, irritações na pele, vômitos, diarreia e inflamação das articulações são os sintomas mais frequentes, enquanto aqueles que já foram infectados sofrem sequelas de diversas gravidades. Os que ainda estão saudáveis, por fim, temem adoecer a qualquer momento.
"O vírus" a que os cubanos se referem é, na realidade, a disseminação simultânea de três arboviroses — doenças virais transmitidas por mosquitos — dengue, chikungunya e oropouche, segundo o governo cubano e a Organização Mundial da Saúde/Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/Opas).
A esses se somam outros vírus respiratórios, como o da covid-19, de acordo com autoridades epidemiológicas ouvidas pela imprensa estatal.
"Matanzas [cidade] hoje parece uma cidade de zumbis… é assim que andamos, curvados, doloridos. Basta sair nas ruas e ver", escreveu há algumas semanas a jornalista Yirmara Torres Hernández em uma mensagem nas redes sociais reproduzida por diversos veículos.
Os relatos que chegam da ilha falam de pacientes febris, encurvados e com dificuldades de locomoção como consequência da epidemia.
Isso ocorre em meio a uma crise extrema que afeta o sistema de saúde, marcada pela falta de medicamentos, limitações diagnósticas e pela percepção generalizada entre os cubanos de que se automedicar em casa é melhor do que procurar um dos hospitais.
Os hospitais de Cuba estão desabastecidos, e os pacientes precisam buscar por conta própria desde remédios até itens básicos, como luvas e seringas
Getty Images/BBC
As autoridades de saúde reconhecem ao menos 47 mortes causadas por arboviroses, embora especialistas e ativistas acreditem que muitas outras não estão sendo registradas ou sendo atribuídas pelo governo a causas diferentes, o que pode tornar o número real muito maior.
Fontes ouvidas pela BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) dizem conhecer vários casos próximos de pessoas que morreram em decorrência do "vírus" nos últimos meses.
Os novos casos de chikungunya cresceram 71% em apenas sete dias, segundo informou na semana passada o Ministério da Saúde Pública de Cuba, enquanto a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) estimou em 25.995 o total de casos da doença.
No entanto, grande parte dos doentes evita procurar atendimento médico quando não está em estado grave, o que torna desconhecido o número real de infectados.
No Brasil, são registrados surtos de dengue no país pelo menos desde os anos 1980. Ela também está se tornando uma preocupação em outras partes do globo, inclusive em nações ricas da Europa e da América do Norte.
Já o vírus chikungunya, identificado pela primeira vez na Tanzânia na década de 1950, chegou oficialmente ao Brasil a partir de 2013 — e causou o primeiro surto em meados de 2015 e 2016. Em uma década, o patógeno se alastrou por 6 em cada 10 cidades brasileiras e causou sete grandes surtos.
O vírus causador da febre oropouche foi identificado pela primeira vez em 1955 em um paciente que morava na vila Vega de Oropouche, na ilha de Trinidade, que fica no Caribe. Pouco depois, já nos anos 1960, o agente infeccioso também acabou flagrado no Brasil.
Entre 1961 e 2000, mais de 30 surtos de oropouche foram registrados no Brasil, especialmente nos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Goiás, Maranhão, Pará, Rondônia e Tocantins, segundo pesquisa da Universidade do Kansas (EUA).
O avanço do desmatamento e as mudanças climáticas aumentam o risco de que essa doença se espalhe para outros lugares e crie novos ciclos de transmissão urbana desse vírus — assim como já acontece com dengue, zika e chikungunya.
'O vírus' e seus efeitos
A BBC News Mundo conversou com vários cubanos que relataram, da ilha, suas experiências com os três tipos de vírus.
"Eu estava trabalhando e senti uma dor no joelho, como um peso muito forte. Quando fui me levantar da cadeira, não conseguia; caminhar ficou muito difícil. Foi assim que começou", lembra Hansel, engenheiro de 31 anos, de Havana.
Isso aconteceu há cerca de dois meses. No dia seguinte, os sintomas pioraram.
"Acordei com dores no corpo inteiro: nas articulações, nos pés, nos dedos, nos dois joelhos, na lombar, nos ombros, nos punhos, nos dedos das mãos…"
Hansel descreve o que sentiu como "uma espécie de artrite, como se, de repente, você se tornasse uma pessoa idosa".
A isso se seguiram três dias de febre alta, chegando a 39°C, combinada com dores intensas.
As dores persistiram mesmo após a febre baixar e, no quinto dia, segundo ele, surgiu uma irritação na pele por todo o corpo.
Após vários dias de dores e febre, Hansel apresentou manchas na pele por todo o corpo
Hansel/BBC
Silvia (nome fictício, pois não quer ser identificada) contou à BBC News Mundo que sua mãe e sua avó, na província de Pinar del Río, no extremo oeste da ilha, estão muito doentes, também por causa do "vírus".
"Sou eu quem conta, porque elas não estão em condições", começa.
Silvia relata que ambas apresentam tremores, febre de até 39,5°C e dores intensas nas articulações, que as impedem de se levantar da cama.
O que elas têm? Pode ser dengue, chikungunya, oropouche ou algum outro vírus. Nem Hansel nem a família de Silvia sabem ao certo, porque não procuraram atendimento médico. Consideram isso um desperdício de tempo e da pouca energia que o "vírus" lhes deixa.
A saúde em Cuba, no limite
Nos hospitais cubanos, relata Silvia, "não há condições para receber as pessoas. Tudo está colapsado, inclusive as alas pediátricas. Não há diagnóstico propriamente dito; apenas recomendam hidratação, acetaminofeno, paracetamol para as dores nas articulações".
"A verdade é que a situação é muito precária. As pessoas simplesmente ficam em casa como conseguem, praticamente sem andar, por causa das dores", afirma.
Um professor de 50 anos, de Havana, também sob condição de anonimato, diz que "são poucos" os que procuram atendimento médico após adoecer.
Como faltam recursos, os hospitais têm dificuldade para fazer diagnósticos. Por isso, muitos cubanos preferem ficar em casa, o que torna difícil saber quantas pessoas estão doentes e qual doença cada uma tem
Getty Images/BBC
"Quase ninguém que eu conheço vai. As pessoas optam por não ir porque nessas instituições não há como obter um diagnóstico seguro e também não há medicamentos. É preciso comprá-los no mercado informal, ou pedir que um parente ou amigo mande do exterior, ou que alguém que more aqui os doe", afirma.
Cuba se autodefine como uma "potência médica" por alguns avanços alcançados nas últimas décadas que não foram obtidos por outros países maiores ou mais ricos, desde a formação de um amplo número de médicos e o envio de missões sanitárias internacionais até o desenvolvimento de uma indústria biotecnológica própria, responsável pela criação de uma vacina nacional contra a covid-19.
No entanto, o agravamento da crise econômica que o país enfrenta colocou o sistema de saúde em condições hoje extremamente precárias.
A maioria dos hospitais está completamente desabastecida de equipamentos, materiais e medicamentos, o que impede a oferta das condições médicas e de higiene mínimas para o atendimento aos pacientes.
A isso se soma o fato de que milhares de médicos cubanos emigraram para o exterior nos últimos anos, deixando na ilha serviços colapsados, plantões sem cobertura e uma sobrecarga crônica sobre os profissionais que permanecem, submetidos a forte pressão por salários que giram em torno de US$ 30 mensais (cerca de R$ 150).
A BBC News Mundo entrou em contato com o governo cubano para solicitar uma entrevista com uma autoridade da área de saúde, mas não obteve resposta.
"As autoridades nacionais implementaram medidas de vigilância e resposta, incluindo o fortalecimento da vigilância epidemiológica e laboratorial, a padronização do manejo clínico nos serviços de saúde e a adoção de intervenções de controle de vetores direcionadas às áreas de maior transmissão", informou a OMS/Opas.
A situação extrema em Cuba não afeta apenas o tratamento de pacientes com dengue, chikungunya e oropouche, como também favorece a disseminação dessas doenças.
"As condições de higiene nos domicílios e em seu entorno influenciam a proliferação dos vetores que transmitem essas doenças", respondeu a Opas ao ser questionada sobre o impacto de fatores como apagões, escassez de água e acúmulo de lixo.
O governo cubano realiza campanhas de pulverização (fumacê) para combater os mosquitos, principal vetor dos vírus que circulam no país
Getty Images/BBC
Outros descrevem o problema de forma mais concreta.
"Se a luz acaba e você não pode usar ventiladores, ar-condicionado ou outros equipamentos que ajudem a combater os mosquitos, eles entram e picam", lamenta Hansel.
A isso se soma, acrescenta o engenheiro, "a questão dos lixões nas esquinas dos bairros, que às vezes são muitos e não são recolhidos ou ficam acumulados ali, e tudo isso também gera mosquitos e problemas".
O acúmulo de lixo, atribuído à escassez de recursos que dificulta sua coleta, cria condições de insalubridade ideais para a propagação desse tipo de doença
Getty Images/BBC
Mortes e sequelas
O governo cubano contabiliza, até o momento, 47 mortes atribuídas ao "vírus", enquanto a OMS/Opas considera válidos os números oficiais.
No entanto, especialistas independentes acreditam que o total real pode ser maior, e várias pessoas ouvidas pela BBC News Mundo dizem conhecer mortes recentes e próximas causadas pela epidemia.
"Conheço duas pessoas que morreram. Ambas idosas, com cerca de 80 anos. Uma delas foi encaminhada ao Hospital Provincial de Sancti Spíritus, e a outra foi mantida em uma pequena sala de terapia existente no hospital de Fomento", afirmou o professor citado anteriormente.
Outra grande preocupação são as sequelas deixadas por esses vírus, cujo alcance a longo prazo ainda é desconhecido.
Por ora, muitos pacientes dizem continuar sofrendo de dores e limitações de diferentes intensidades semanas e até meses após a recuperação.
"Ainda sinto dor nos dedos das mãos; por exemplo, ao fechar a mão e apertar, tenho dificuldade para abrir potes. Os ombros doem e a lombar também um pouco. E já passou mais de um mês", lamenta Hansel.
Cuba sofre com doenças transmitidas por mosquitos